sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Bósnia, refém da "paz" de Dayton

No último dia 21 completaram-se 16 anos da assinatura do acordo de paz que colocou fim à guerra na Bósnia, o pior conflito em solo europeu desde o fim da Segunda Guerra Mundial e que se arrastava desde 1992.

Pelo acordo, ficou definido que a Bósnia ficaria composta por duas entidades – a República Sérvia da Bósnia (República Srpska) e a Federação da Bósnia-Herzegovina (ou Federação muçulmano-croata) e que a presidência seria exercida por um triunvirato composto por um representante sérvio, outro croata e um bósnio muçulmano. Em 2005, quando foram celebrados dez anos da assinatura do tratado, o então subsecretário de Estado norte-americano Nicholas Burns elogiou a paz de Dayton, mas disse que o acordo precisaria “ser modernizado”.

A fala de Burns não foi necessariamente profética, porque o inusitado sistema político que tentou agradar a gregos e troianos (ou melhor, a sérvios, croatas e bosníacos) não demorou a dar sinais de debilidade – ou mesmo de ser inviável na prática. Aliás, não é exagero dizer que a Bósnia se tornou uma espécie de refém do acordo de Dayton, que tinha como objetivo trazer a paz aos Bálcãs.

O melhor exemplo é a situação atual do país, que no último dia 3 de outubro completou nada menos que um ano sem governo. Além da falta de entendimento entre as duas entidades que formam o país, desta vez há também as discordâncias entre croatas e bosníacos, que compõem uma delas. A incerteza ajuda a alimentar os ressentimentos étnicos mal resolvidos e serve como argumento para os defensores da teoria de que cada 
etnia siga para seu lado – pregada em especial na parte sérvia da Bósnia.

"A arquitetura constitucional criada pelos acordos de paz de Dayton, com esse rígido tramado de poderes de veto, não funciona", explica Andrea Rossini, especialista em Bósnia do Observatório sobre os Bálcãs e o Cáucaso, ao jornal espanhol El País.

A divisão político-administrativa criada por Dayton não é a única crítica feita ao acordo. Segundo especialistas, ele ajudou a legitimar as atrocidades ocorridas durante a guerra. Cidades que outrora eram habitadas pelos três povos ao mesmo tempo foram limpas etnicamente ou tiveram o perfil populacional alterado para sempre. Em Srebrenica, palco do massacre de 1995 e hoje na porção sérvia da Bósnia, ainda conta com relativo equilíbrio. Dos atuais 10 mil habitantes, 60% são sérvios e outros 40% muçulmanos – em 1991 eles chegavam a 72,3% do total.

Imobilizada pelo acordo de Dayton e pela falta de entendimento entre sérvios, croatas e bosníacos, a Bósnia tem seu futuro como nação colocado em cheque. Apelidada de "pequena Iugoslávia", se vê com os mesmos problemas étnicos vividos pela extinta federação. Talvez o horror recente gerado pela dissolução iugoslava nos anos 1990 ajude a segurar um pouco o ímpeto dos nacionalistas mais extremos. Mas infelizmente as perspectivas para os próximos meses ou anos, caso mantido o atual contexto, não são nada animadoras.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Rádio, rock e resistência - entrevista com Veran Matic

Abaixo segue uma entrevista que fiz em outubro de 2006, junto com meu colega Edson Castro, para o Contraponto, jornal laboratório da PUC-SP, e também publicada na edição 195 do jornal Brasil de Fato, do fim de novembro daquele ano. O entrevistado é Veran Matic, CEO da B92, um dos poucos veículos de comunicação nos anos 1990 a se colocar contra o governo de Solobodan Milosevic na Sérvia e na Iugoslávia.

Hoje ela é considerada um dos maiores grupos midiáticos da região - e acusada por alguns de trair alguns dos princípios que a norteavam nos primórdios. Mas a trajetória dessa organização é um retrato pouco comum daqueles dias no país, e que vale a pena ser conhecido. Abaixo, o texto na íntegra, incluindo a introdução.

Rádio, rock e resistência


Edson Castro
Rodrigo Borges Delfim

A história da Rádio B92 se confunde com a história recente da Sérvia e da região dos Bálcãs, marcada por sua instabilidade histórica. Fundada por um grupo de jovens em 15 de maio de 1989 com o slogan “A rádio que você ouve, vê, lê, toca... a rádio que tem vida”, a B92 surgiu em um momento onde o então presidente da Sérvia, Slobodan Milosevic, começava a estender sua influência sobre a mídia sérvia e depois se utilizaria dela para propagar um nacionalismo sombrio que resultaria em guerras, hiperinflação, repressão política, assassinatos, limpeza étnica, entre outros.

A Rádio B92 atuou como voz dissonante a esse contexto e ao regime repressor de Milosevic, apoiando manifestações contra o regime, denunciando as atrocidades que eram cometidas, lutando contra a censura imposta por Milosevic (a rádio foi fechada quatro vezes em dez anos). Mostrou uma outra Sérvia, diferente da que era descrita mundo afora como a imagem e semelhança de seu presidente, conhecido como “o açougueiro dos Bálcãs”. A oposição da rádio se refletia também em sua programação musical, baseada em músicas de protesto típicas do punk-rock, ao contrário das músicas de cunho nacionalista veiculadas pela maioria das rádios de Belgrado. Hoje a B92 se tornou a Rádio Televisão B92 (RTV B92), de alcance nacional, uma das organizações de mídia mais respeitadas dos Bálcãs. Sua história está descrita no livro “Rádio Guerrilha – Rock e Resistência em Belgrado”, lançado este ano pela Editora Barracuda.

Fundador e atual diretor executivo da RTV B92, Veran Matic esteve no Brasil para o Antídoto – Seminário Internacional de Ações Culturais em Zonas de Conflito, promovido pelo Itaú Cultural e o Grupo Cultural AfroReggae entre os dias 17 e 20 de outubro em São Paulo. Na entrevista abaixo, Veran falou da rádio nos tempos de Milosevic e dos desafios atuais da B92, entre eles o de conciliar a sua história de luta contra um regime repressor e seu atual status comercial.


Crédito: Conteúdo Comunicação/Divulgação

Contraponto - Como e de onde surgiu a idéia da B92?
Veran Matic - Desde 1984 quando eu já trabalhava com jornalismo, queria fazer um programa que fosse bem aceito pelos jovens do país.Por ocasião das comemorações do aniversário de Tito em 1989, conseguimos, junto ao governo, a autorização para que fosse transmitido um programa experimental pelo período de 15 dias. No entanto, após esse prazo, a rádio continuou operando mesmo na ilegalidade, por oito anos, até que obtivemos os documentos necessários para a regularização.

O rádio era praticamente o único veículo que militava no país, e a idéia era montar uma rádio com um grupo de pessoas que lutassem contra as idéias predominantes na sociedade, um lugar onde pudéssemos ter liberdade de nos expressarmos e defender os direitos humanos, uma coisa diferente de tudo o que era feito até o momento, já que até então só o que havia de fato era a mídia estatal. Era uma rádio bem jovem.

CP - Desde o começo você já imaginava que a B92 assumiria esse papel de oposição ao governo?
VM - A rádio já nasceu em um momento especial – pouco antes da queda do muro de Berlim -, em uma época em que não havia outros partidos além do Comunista. Então a rádio era o único lugar em que os jovens poderiam conversar, motivo pelo qual a rádio conseguiu preservar sempre sua independência. A rádio se fortalecia à medida que apoiava manifestações que contestavam o regime de Milosevic, como as que ocorreram em favor das mães, das crianças, dos direitos humanos. Acabávamos representando as minorias presentes no país, desde políticos da oposição até prostitutas.

CP - Como a rádio se mantinha financeiramente, na época da guerra?
VM - Nos primeiros anos (de 1989 até 1991) a rádio estava bem segura financeiramente por causa dos comerciais. Com o início das guerras em 1991, cessaram os comerciais e ninguém queria ajudar a B92 por medo de se envolver com uma rádio que era contra o regime. Então a rádio promovia shows em clubes que com a Internet chegavam ao mundo inteiro. Também era promovida anualmente uma grande conferência para atrair doadores, onde expúnhamos nossas idéias, nossos planos para o ano seguinte. Obtivemos por volta de 40 doadores, cuja participação de cada um era sempre limitada a até 20% do valor arrecadado pela rádio para preservar a sua independência. Hoje, 90% da renda da B92 vem do marketing e só 10% são doações.

CP – Qual foi o papel revolucionário que a rádio teve junto ao processo de transformação da Sérvia?
VM - É uma situação muito difícil de lidar, mas um dos mais importante foi a criação de uma rede de estações de rádio e TV em volta da B92, conectados via satélite. Com isso, as discussões antes restritas a Belgrado se espalharam pelo país. Não queríamos uma democracia importada dos Estados Unidos, por exemplo. É muito importante que o desejo de democracia parta de dentro da sociedade sérvia, pois assim ele se torna mais forte e verdadeiro. Um resultado prático disso foi a queda do Milosevic em 2000.

CP - Você em algum momento sentiu medo de Milosevic?
VM - Sim, mas o maior medo não era tanto em relação a mim, mas em relação a minha família. Fiz um acordo com minha esposa para que não conversássemos muito sobre o que poderia acontecer comigo. Em 1999 eu estava em casa e por volta das duas da manhã percebi que haviam cortado o sinal da rádio. Tinha certeza que com isso os funcionários estariam sendo detidos e expliquei para minha mulher o que estava havendo, que eu deveria ir para lá também e que eu seria preso, o que ocorreu de fato. Mas só hoje, depois que tudo isso aconteceu, é que percebemos o tamanho do risco e do perigo que corríamos.

CP - Em seu início, a B92 tinha como diretor executivo Nemad Cekic, que saiu devido a divergências. Como é a relação hoje entre vocês?
VM - Tivemos algumas diferenças, pois Cekic gostava mais de música popular e eu de música mais progressiva; ele não era tão crítico em relação ao regime, enquanto eu tinha uma postura mais dura. Vivíamos em dois mundos separados. Hoje em dia Nemad é CEO (sigla em inglês para diretor executivo) da Index Plus Company. Já faz muitos anos que não temos nenhum contato, mas não houve nenhuma briga entre nós.

CP - Como você vê hoje a juventude sérvia?
VM - A vida dos jovens na Sérvia é bem complicada por causa do mercado de trabalho que é bastante fraco. Durante as guerras saíram do país 400 mil jovens. Com a queda de Milosevic muitos se interessaram em voltar ao país, mas após vários anos de economia fraca ainda há muitos que saem do país em busca de melhores condições. Há problemas também com drogas, como heroína, cocaína e maconha. As escolas públicas antes da guerra tinham uma boa qualidade de ensino, mas durante as guerras foram destruídas por causa desse regime que estava no poder.

Meu filho todo ano aprendia na escola uma fronteira diferente por causa das guerras que alteravam a todo instante as fronteiras dos países da região, e que continuam se alterando. Em 2006 Montenegro se separou da Sérvia, e em 2007 a região do Kosovo muito provavelmente fará o mesmo. Até nós em Belgrado estamos pensando em nos separar também (risos).

CP - Na sua opinião, o que é a B92 para a Sérvia e para você em particular?
VM - Tanto para mim como para a Sérvia a B92 é um símbolo, uma referência de informação verdadeira, que todo mundo vai escutar e procurar no caso de qualquer problema, para saber o que está acontecendo. Exemplo disso é o caso do assassinato do premiê Zoran Djindjic (morto em março de 2003, caso ainda não completamente esclarecido), onde grande parte da população acompanhou o que ocorria pela B92 enquanto a TV estatal estava duas horas atrasada.

Nem o governo, nem a oposição gostam muito da B92, mas a emissora também não sofre nenhum tipo de influência. A B92 tem mais espectadores que as outras duas emissoras principais – uma estatal, a RTS (Rádio e Televisão Sérvia) e outra comercial. No entanto, mesmo não gostando da B92, os próprios políticos vêm até a emissora em tempo de eleição por causa do crédito que a temos junto ao público.

CP – A B92 teve como um de seus slogans “Não confie em ninguém, nem na gente”. Como fica hoje esse slogan, já que você tinha toda uma preocupação de que as pessoas não aceitassem cegamente tudo o que passava na B92 a exemplo do que ocorria na TV estatal?
VM - Hoje em dia esse slogan não é mais usado (risos). A idéia do slogan era a seguinte: durante quatro semanas em 1993 tivemos um programa sobre política, no qual ia ao ar ao vivo com vários convidados políticos. Mas chegou um momento em que eu fiquei preocupado com o fato de que qualquer coisa que eu dissesse os ouvintes tomariam como verdadeira, sem questionamento, não importando o que fossem. A mensagem por trás do slogan era “pense por si próprio, com sua própria cabeça, seja independente”.

Com o passar do tempo, a população passou a pensar mais por si mesma, apesar de outros problemas que surgiram agora. Hoje há um número crescente de tablóides sensacionalistas em circulação na Sérvia, com um péssimo jornalismo. Mas em um certo ponto isso é até bom, já que a população sérvia assim pode diferenciar melhor a B92 de tais veículos.

Em 1998 sentíamos que o regime de Milosevic iria acabar. Então chamamos um especialista britânico para que ele deixasse a emissora mais “light”, por uma questão de sobrevivência mesmo, para que a nossa mensagem pudesse chegar a mais pessoas. E ele ficou chocado com o slogan da B92. A evolução da rádio foi mais lenta e gradual do que na televisão, e elas tem que ser feitas gradativamente.

Nem todos acreditam no que a B92 diz, como os nacionalistas, mas assim mesmo eles nos assistem na TV.

CP - Como fica toda a história da B92 frente a esse lado comercial, como conciliar ambos?
VM - Hoje a B92 é mais comercial, infelizmente passamos alguns programas que não gostaríamos de passar, como o Big Brother. Não é um assunto que interessa à B92, mas transmitimos por causa da sua popularidade. Mas, com o dinheiro obtido com esses programas, nós podemos produzir outras coisas que são mais ao nosso gosto. Mesmo o Big Brother nós procuramos adaptar à realidade local, colocando entre os participantes um sérvio cristão, um bósnio muçulmano, entre outros.

Procuramos oferecer uma programação de qualidade. Transmitimos eventos esportivos como a Liga dos Campeões, a Fórmula 1 e o Campeonato Espanhol. Produzimos vários “talk-shows” que são bem populares, onde a política é um dos temas debatidos. Procuramos montar a grade de programação de forma que o telespectador depois de assistir um programa como o Big Brother, por exemplo, assista o noticiário logo em seguida.

A grande vantagem da B92 em relação aos demais é que TV, Internet e rádio são conectados entre si, com os jornalistas trabalhando ao mesmo tempo para os três veículos.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Estônia e Sérvia: dois extremos no Leste

Apesar da grave crise enfrentada pelo euro, entrar na União Europeia e adotar a moeda continental no futuro ainda são objeto de desejo para a maioria dos países ainda de fora do bloco, em especial no leste. Mas enquanto certos países experimentam avanços a passos largos rumo à tão sonhada integração, outros patinam. Como exemplos desses dois lados podem ser citados a Estônia e a Sérvia.

Integrante da UE desde 2004 e parte da zona do euro desde janeiro deste ano, a Estônia é atualmente considerada um país modelo dentro do bloco. A pequena ex-república soviética tentou apagar qualquer vestígio da URSS no sistema político e burocrático e não hesitou em “cortar na própria carne” para enfrentar a crise global de 2008, que afetou duramente o país: cortes em serviços sociais e de saúde, redução nos salários e na burocracia estatal. Tudo isso com o consentimento da população, que não esboçou reação às medidas adotadas pelo governo – em outros países o efeito de medidas de arrocho como essas causariam mais e mais protestos.

Como resultado dessa política, o país atualmente tem baixo nível de endividamento, atrai investidores e empreendedores de toda a Europa e conseguiu com facilidade cumprir as metas para adotar o euro. Depois de encolher nada menos que 14% em 2009, o PIB estoniano já acumula alta de 8% nos dois primeiros 
trimestres deste ano. Se tal crescimento vai se manter nos anos seguintes ainda não é possível prever, mas são suficientes para atrair a simpatia de Bruxelas.

Do lado oposto da questão estão os países dos Bálcãs que ainda não ingressaram na UE, em especial a Sérvia. No último relatório feito pelos países-membros do bloco, a principal sucessora da antiga Iugoslávia teve recomendado status de candidato, mas sem data certa para início das negociações. Recados duros também foram enviados à Bósnia e Albânia para que primeiro consigam resolver suas demandas internas. As exceções são Croácia e Montenegro, que podem ingressar no tão sonhado bloco a partir de 2013 – para grande irritação da Sérvia.

Em Belgrado era grande a crença que a captura do general Ratko Mladic eliminaria os obstáculos entre o país e a entidade. Passados quase seis meses da entrega do ex-militar ao Tribunal de Haia, o crescimento da tensão envolvendo o Kosovo esfriou as negociações com Bruxelas. Somada à alta taxa de desemprego, na casa dos 20%, tal baque reduz o apoio da sociedade a uma futura entrada na UE e vira argumento para a oposição nacionalista e radical. Representada por Tomislav Nikolic, essa aliança perdeu por apenas 100 mil votos a eleição presidencial de 2008 para o candidato pró-Europa e reeleito Boris Tadic.

Além de se preocupar com a crise da dívida, a UE também não pode descuidar da integração do restante da Europa, caso pretenda ser um bloco que represente a totalidade do continente. Mas dois fatos ficam claro a partir desses dois exemplos: que lidar com um país praticamente iniciado do zero há vinte anos atrás como a Estônia é uma coisa; e lidar com outro com passado recente de conflitos e ainda cheio de questões étnicas, políticas e históricas para resolver é bem diferente. E a Europa mostra que ainda não aprendeu a lidar com a instável região balcânica.